21 de agosto | 2016

A inquietude folklórica

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João Victor Moré Ramos
Falar de folclore é mais do que falar de uma festa que se comemora anualmente. Folclore, como diria Chico Science, é tradição. Ou melhor, dizendo, são o conjunto de tradições, artes, conhecimentos, e crenças populares de um povo ou grupo transmitido oralmente, ou mesmo a própria cultura popular. Nas palavras de Pedro Luís, poderíamos considerar Chico talvez o expoente da cultura nacional que mais soube sintetizar, pós-movimento tropicalista, a modernização do nosso folclore enraizado no movimento Manguebeat.

Com efeito, a crise neoliberal dos anos 90 foi um marco e inflexão em seu percurso musical. Naquele período, a cartilha redigida pelo Consenso de Washington foi seguida rigorosamente por medidas antinacionais e antipopulares dos governos Collor-FHC, a saber: flexibilização da economia, austeridade fiscal, corte de gastos públicos e sociais, aumento do desemprego, congelamento dos salários, priva­tizações em setores estratégicos da economia, desregulação de mercados financeiros afastando o capital do sistema produtivo, etc.

De acordo com Moniz Bandeira, o Brasil entrava no século XXI submerso de contradições. Com um PIB na ordem de U$ 1 trilhão superior ao do México (US$ 865,5 bilhões estimado em 1999) e do Canadá (US$ 722,3 bilhões), quase duas vezes maior do que o da Rússia (US$ 620,3 bilhões) e quase tão grande quanto o da França (US$ 1,3 trilhão estimado em 1999), Grã-Bretanha (US$ 1,3 trilhão estimado em 1999) e Itália (US$ 1,2 trilhão) – foi considerado um dos países com maior desigualdade na distribuição de renda, indigência e a pobreza de amplas camadas sociais coexistindo com a ostentação da riqueza e o consumo supérfluo de alguns poucos.

É desse contexto que nasce o movimento dos “caranguejos com cérebros”, manifesto escrito por Fred 04 (vocalista e compositor da banda Mundo Livre SA) divulgado em 1993 no encarte do primeiro disco gravado por Chico Science e Nação Zumbi, “Da lama ao Caos”.

Não se deve esquecer que o Recife (capital de Pernambuco e do manguebeat), desde a época da expulsão dos holandeses até o segundo império cheirava revolução – basta lembrar a última das revoltas separatistas em repúdio a monarquia (de corte liberal-federalista) conhecida como Praieira (1848-51), sugestivamente influenciada pela primavera dos povos de 48 na Europa.

Curiosamente, ao se dar um salto em séculos, no início dos anos 90, um instituto de questões populacionais da ONU, considerando que metade dos habitantes de Recife morava em alagados e favelas, classificavam a cidade como a quarta pior do mundo para se viver. É desse cenário que Chico Science irrompe subvertendo as diretrizes impostas pelo Império na cidade “maurícia” – que passou a crescer desordenadamente à custa do aterramento indiscriminado, bem como da destruição de seus manguezais.

Entre o conceito do mangue enquanto organismo – símbolo de fertilidade, diversidade e riqueza – e a cidade estuário, aquela metrópole da miséria e do caos urbano, surgiram os fundamentos da Manguetown. Acompanhados da crítica, o manguebeat dissolvia a coisa idílica do Recife cantada por Alceu Valença nos anos 80, ao tornar expressão nacional a fala dos bairros, das praticas sociais, das coisas especificas da cidade, dos modos de sobrevivência, quando não das contradições alagadiças até então esquecidas.

Numa espécie de aufherbung hegeliano (superação-conservação), os mangue-boys ultrapassavam o cerco contracultural do movimento tropicalista, – estudando o Samba de Tom Zé (1975) em sua celebre onomatopeia do Ui!, – em que “Você inventa o luxo; Eu invento o lixo”. Assim fez se ouvir a voz dos marginalizados. Uma voz que argumenta pelo coletivo e que todas as classes são capazes de compreender.

Das linhas da “Geografia da Fome” aos “Homens e Caranguejos” de Josué de Castro, o impulso do sobrenome em anonimato rompia o estabilishiment cultural e político recifense, até então dominada, conforme observara o jornalista Renato Lins, por uma visão armorial da cultura popular “estagnada, atemporal, quase fora da historia, que tinha de ser preservado numa redoma”.

Na verdade, a tensão produzida entre as duas vertentes estéticas do movimento armorial com Ariano Suassuna a frente, e do manguebeat com Chico nada mais foi do que uma disputa pelo terreno da cultura de massas. Um terreno movediço, alias, diga-se de passagem. Conco­mitan­temente ao folclore, a cultura de massas reflete a concepção de mundo e de vida contida em determinados segmentos da sociedade em contraposição as concepções de mundos oficiais que se sucederam ao longo do desenvolvimento histórico.

 É nesse sentido que o folclore possui uma estreita relação com o senso-comum – uma concepção de mundo não elaborada, assistemática e múltipla, produzida e preservada pelo povo.  É dai que uma massa de opiniões jurídicas populares assume a forma de direito natural. É dai que noções científicas e certas opiniões após serem descontextualizadas e em certa medida desfiguradas, caem no domínio popular e são inseridas no mosaico da tradição passando a constituir novos elementos para o folclore moderno.

De qualquer modo, seria um exagero afirmar com Xico Sá, que o “Chico colaborou mais para o pensamento do Suassuna do que o próprio purismo do movimento armorial”. E continua: “todo mundo entendeu que poderia reinventar o maracatu com uma batida, que ele poderia ser mais cosmopolita e não ser só um movimento ligado ao folclore a viver das esmolas das prefeituras”. Na verdade, Suassuna é enfático em dizer que não há como ser internacional sem ser profundamente nacional. Abandonar o nacional é ser engolido em dois tempos pelo imperialismo. O que foi o movimento tropicalista senão isso, ou uma concepção folclórica.

João Victor Moré Ramos é Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina.

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