31 de maio | 2020

Canal de tecnologia do Uol questiona se emburrecemos por causa da tecnologia

Compartilhe:

“Basta clicar e, pronto, pode rosnar em paz. Na melhor das hipóteses, pode dar em nada. Na pior, pode agravar uma crise sanitária”.

DO TILT DO UOL
O canal de tecnologia do UOL – site de conteúdo jor­nalístico ligado à Folha de São Paulo – denominado Tilt, postou no último dia 19 um texto de um de seus colaboradores, Matheus Pi­chonelli, onde o articulista questiona um dos prin­cipais problemas da cri­se atual, tão ou mais importante que o novo co­ro­navírus que poderá provocar centenas de milhares de mortes.

No artigo, Pichonelli, começa perguntando com o titulo: “Pandemia da ignorância: emburrecemos na última década ou é só mais acesso?”. E no decorrer da viagem que provoca a publicação o leitor é convidado a refletir sobre as ca­usas que nos levaram a viver o a­tual momento carregado de ódio e mentiras na in­ter­net.

Com a palavra Matheus Pichonelli:

Está provado, mas isso a mídia não vai mostrar: a­mi­go do primo do vizinho contou que um pan­da chinês morre de in­far­to cada vez que alguém manda no grupo de Wha­ts­App aquela receita milagrosa para ma­tar o co­ronavírus na ba­se do chá ou da água quente.

Não, a história acima não é verdade. Mas, se esta mesma mensagem viesse embalada num card mal desenhado com os devidos créditos a um cientista desconhecido formado por uma universidade i­ne­xistente, a chance de ela replicar era razoável. Por mu­ito menos, houve quem gravasse um tutorial de como afogar o vírus com uma overdose de quinino da água tônica. Tem gente convicta também de que uísque e mel são tiro-e-queda para brecar a pan­demia. Que álcool em gel não tem a mesma eficácia do bom e velho vinagre. E que tudo bem beber ou in­jetar desinfetante só porque Donald Trump mandou.

REDES ATRAPALHAM A PRODUÇÃO CIENTÍFICA

No meio de tanta desin­formação, o drama de quem tem o trabalho baseado nas evidências é assim resumido pelo médico e che­fe de pesquisas do Hospital Albert Einstein, Luiz Rizzo: as redes sociais a­tra­palham imensamente a produção científica. Nas re­des, a prudência diante da escassez de informações a respeito de um no­vo medicamento é soterrada por milhares de men­sagens dizendo que alguém tomou e melhorou. É o que Rizzo chama de Medicina BBB.

Essa competição com as correntes falsas ou baseadas em meias verdades não estava no horizonte da comunidade científica durante a epidemia da H1N1, em meados 2009. Médicos e cientistas chegam a lembrar daquele tem­po com saudade. Naquele ano, o Facebook tinha menos de 500 milhões de usuários. Muita coisa, é verdade, mas o botão de curtir, assim como o WhatsApp, eram ainda uma novidade.

A geringonça de Mark Zu­ckerberg já fazia estragos, mas nada que se compare com o potencial explosivo de uma rede que conta hoje com 2,3 bilhões de inscritos onde diariamente os tios-avôs do mun­do todo compartilham alertas relacionando vacina a autismo ou botando em dúvida o formato da Terra.

Em vez de carros voadores, as linhas de produção científica atuais precisam o tempo todo interromper a construção das pontes e o­bjetos do futuro para defender e explicar conceitos consagrados desde a Gré­cia Antiga. É um trabalho dobrado em tempos de pan­demia.

O IGNORANTE, AFINAL, NÃO SABE QUE É IGNORANTE…

Ele só enxerga até onde o nariz alcança. É diferente de quem botou a cabeça para fora de casa e se assustou com a vastidão do universo; este já se conformou com o dilema so­crá­tico: só sei que nada sei.

O ignorante não. Se ele não viveu, não aconteceu. Se não se infectou, a gripe não existe. Se está vivo, não há drama. E se seus pais sobreviveram a regimes autoritários, o a­uto­ritarismo é só conversa fiada.

Assim, sem saber que pas­sa vergonha, ele dorme tranquilo com a certeza de que lacrou, enquanto quem sabe ligar os pontos vive angustiado pela dúvida.

Dez anos depois da primeira curtida no Facebo­ok, a confusão resultante da avalanche de informações e desinformações permite dizer que emburre­ce­mos de lá para cá? A pergunta está em aberto, mas o dilema sobre os retrocessos geracionais não é privilégio deste século.

Em 1935, o compositor Enrique Santos Discépolo cantava, na música “Cam­ba­lache”, que o mundo dos anos 2000 seria a mesma porcaria dos anos 500. No século 20, lamentava ele, dava no mesmo ser ignorante ou sábio, generoso ou vigarista. Tudo era igual. Nada era melhor, fosse “um burro ou um grande professor”.

NO SÉCULO 21, A IGNORÂNCIA SE EMPODEROU…

Virou plataforma política, enquanto cientistas foram mandados para o pa­redão dos inimigos da pátria, da baderna, na falta de fé ou de pensamento positivo. Não era tecnologia, e­ra feitiçaria.

Em um artigo recente, o jornalista Lourival San­t’­­a­n­na, do Estadão, disse ter aprendido nas coberturas de tragédias, guerras, terremotos e até epidemias que o pensamento mágico se torna mais forte quanto mais as pessoas se sentem vulneráveis. Assim, se a realidade é dolorosa e a­meaçadora demais, o incentivo para fugir dela se torna maior.

É quando os fatos ficam irrelevantes diante de sentimentos, impressões e o­piniões. “Assim como a ra­cionalidade, a irracio­nali­dade também tem uma lógica interna, um funcionamento capaz de se retroa­limentar e reforçar, independentemente dos fatos”, escreveu.

Em 485 dias como presidente, Jair Bolsonaro deu 967 declarações falsas ou distorcidas, de acordo com a agência de checagem de notícias Aos Fatos. Quando veio a pandemia, essa postura mostrou seu poder de produzir estragos.

CAIXÕES ENTERRADOS VAZIOS

Em março, ele anunciou que o número de infecta­dos pelo coronavírus na região norte do país era pequeno, porque grande parte da população local usava a cloroquina como “vacina” contra a malária. Semanas depois, o colapso no serviço de atendimento de saúde e funerário em Manaus precisou ser desmentido com mentiras de que caixões eram enterrados vazios com o intuito apenas de apavorar a população.

Com base no cruzamento de dados de geor­refe­ren­ciamento e da votação de Bolsonaro em 2018, um pesquisador da Universidade de Cambri­dge, no Reino Unido, já apontou evidências de que quan­do o presidente desdenha da pandemia, o isolamento social cai em muitos de seus redutos eleitorais.

Essa baixa reverência aos fatos vira a pororoca entre ignorância e negligência, que desemboca nos smartphones das melhores famílias.

Antes de serem desmen­tidas, as notícias falsas ou erradas circulam livremente na corrente sanguínea das redes, tirando do isolamento e dando a sensação de pertencimento a cidadãos desinformados que se conectam e passam a ser direcionados e municia­dos com os argumentos mais fajutos.

A mesma rede que permite viajar, baixar livros, filmes ou fazer visitas virtuais a museus do mundo todo colocou na mesma linha do tempo quem que­ria apenas postar fotos de gatinhos ou despejar a frustração com um mundo num sábado à tarde. São o alvo fácil para quem jura ter explicação sobre todos os seus fracassos profissionais, e­xistenciais e morais. Como Sherazade, grupos organizados entregam meias verdades e teorias da conspiração a conta gotas para prender a a­ten­ção dos cidadãos que entram no negócio com apenas dois ativos: medo e raiva.

Sobre eles o psicanalista e escritor Contardo Calligaris escreveu:

“É o injustiçado cultural. Nos últimos 20 anos, ele não leu um livro, não frequentou cinema, teatro, exposições ou shows. Em vez de acusar sua preguiça e ignorância, ele prefere pensar que o seu direito à cultura lhe foi sonegado por um complô de esquerdistas ou marxistas, que se apoderaram da pro­dução cultural”.

O que as redes oferecem é um atalho, uma sensação de que podemos gritar “E­ureka!” ao fim de 280 ca­rac­teres sem precisar nos aprofundar em nada. É tentador demais para dizer não.

IMBECÍS DE BUTECOS GANHARAM AS REDES SOCIAIS

Pouco antes de morrer, em 2016, o escritor e filósofo italiano Umberto Eco afirmou que as redes sociais deram o direito à palavra a uma “legião de imbecis” que antes falavam apenas “em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade”.

Seria necessário acompanhar a escalada de burrice de um mesmo cidadão ao longo do tempo e exposição ao uso das redes para dizer se ela se intensificou, foi estimulada pela manada ou apenas ficou mais visível nos últimos anos. O gráfico poderia ser medido pelo consumo de alfafa ao longo do tempo.

Mas até para mensurar a estupidez é preciso cautela científica.

O que dá para cravar é que as redes facilitaram a gritaria — ou o relincho. Antes, para expor uma i­deia, era preciso colocar no papel, pensar na logística, na gráfica, na impressão, na tinta, etc. A banca de jor­­nal era um filtro, e sua vitrine não comportava a quantidade de publicações abortadas por gente que tentou imprimir uma ideia e engasgou com a tinta.

As redes facilitaram a vi­da de uma nova parcela. Basta clicar e, pronto, pode rosnar em paz. Na melhor das hipóteses, pode dar em nada. Na pior, pode a­gravar uma crise sanitária ou criar atritos desnecessários com o maior parceiro comercial.

Talvez já fosse assim nos tempos de Sócrates. Por sorte, não há registro de quantos haters (pessoas que só querem ofender e criticar . Gente que só quer propagar o ódio e a raiva) chegaram aos ouvidos do grande filósofo acusando aquele papo to­do de querer transformar a Grécia Antiga em uma nova Ve­ne­zuela.

Compartilhe:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do iFolha; a responsabilidade é do autor da mensagem.

Você deve se logar no site para enviar um comentário. Clique aqui e faça o login!

Ainda não tem nenhum comentário para esse post. Seja o primeiro a comentar!

Mais lidas