16 de dezembro | 2018

Maria Móra

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Maria Antonia de Oliveira

Pronuncio o nome e a lembrança dela se faz presente. Rosto bonito, olhos levemente puxados e bem vivos. Risada fácil. Uma das minhas recordações mais antigas, por volta dos dois anos, é de estar com a Cina, que cuidava de mim, na cozinha de u­ma casa da vizinhança.

Música animada no rádio, uma moça alta dança e gi­ra a saia rodada. Eu me a­gacho para espiar suas per­­nas por baixo daquela roda de pano colorido. Era ela, a Maria Móra. Irmã da Cina, da Helena, da Jan­dira, do Ditinho, do Zu­za, do Arlindo, da Doca, do Dídio… todos filhos da Divina, que lavava ro­upa e torrava café para o pessoal do bairro. O pai de toda esta filharada, não conheci. Morreu quando eles ainda viviam e trabalhavam na fazenda da minha família.

Divina morava logo ali depois do trilho do trem, a meio quarteirão da grande casa onde eu nasci (esta mesma onde nos encontramos agora). A Cina trabalhou na minha casa por dez anos e a Helena por catorze. Cresci convivendo com esta realidade bi­partida. A abundância da casa dos meus avós, onde morei por muito tempo. E a pobreza da família da Divina, pois, quase diariamente, a Cina ou a Helena iam ver a mãe e eu e meus irmãos estávamos juntos. Presenciei os dramas do Zuza e do Dídio que bebiam muito. Acompanhava as notícias das trajetórias: do Ditinho trabalhando no Jockey Clube em SP, da Doca que foi embora ser freira e da Jandira em Cu­riti­ba. Testemunhei o esforço da Helena para voltar estudar e a frustração em não passar no exame de admissão ao ginásio (a­tual quinta série). Ouvíamos a Divina contar que bebia pinga para ter coragem de lavar tanta roupa, e tantos outros detalhes de suas carências cotidianas. Todas essas pessoas se tornaram muito próximas do meu coração. Um dia, a Cina se casou e foi morar em São Paulo. Eu chorei e esperneei. Tempos depois a Helena foi também, senti muita falta.
Ficou a Maria Móra. Juntando todas suas idas e vindas, trabalhou na casa da minha avó e da minha mãe por uns vinte e quatro anos. Ela não sabia ler, sabia era cozinhar maravilhosamente bem. Tinha também conhecimentos ancestrais e intuitivos. Em uma ocasião em que eu andava muito triste, com dor de cotovelo, ela fez uma simpatia sem que eu soubesse. Tempos depois tomei conhecimento do fato e desconfio que suas orações e boas energias me auxiliaram a superar aquele momento. Quando, depois de casada, plan­­tei um pé de Oliveira na frente da minha casa nova, ela me disse: “Você não imagina como é bom ter feito isso”. Nem perguntei por que razão.

Senti na sua voz a autoridade de quem sabe o que está falando.

Quem lhe deu o apelido Móra foi meu tio Alti­no, o Tinão. Famoso diretor da escola Capitão Narciso. Como a mulher dele, minha queridíssima inesquecível tia, também se chamava Maria, para diferenciar ele batizou a cozinheira de Maria Moura. Moura, de pele escura. E de moura, virou móra. Ela fazia aniversário dia 23 de fevereiro. Eu costumava lhe dar de presente um litro de mel, pois ela ficou anos tossindo, fumou mu­ito. Gastava gran­de parte do seu ordenado na farmácia do Cláudio. Quando a Helena morreu deixou uma filha de cinco a­nos. A linda Samara veio morar com a Maria que lhe criou com todo carinho.

Infelizmente todo seu cuidado não conseguiu impedir que a sobrinha fosse embora de forma prematura e trágica. Nem ela, nem eu tivemos força para buscar os responsáveis.

Por consideração e respeito não me sinto bem em compartilhar outras informações sobre a Maria, que são muito particulares. Sinto é vontade que a memória dessa mulher hu­milde, trabalhadeira, que muito sofreu e não de­i­xava transparecer no rosto, seja honrada e preservada. Foi com essa intenção que pintei este quadro/metáfora. Na verdade, ela não amamentou ninguém. Nem os filhos que não pode ter, nem os filhos dos patrões. Mas alimentou três gerações com quitutes deliciosos, simpatia e alegria.

Pouco antes de sua aposentadoria, meu avô lhe comprou uma casa na vila Cizoto. Porém, quando a Maria Móra ficou realmente doente, a Luisa, minha prima que morava aqui na época, a trouxe para cá e cuidou dela até seu falecimento, em um dos quartos desta casa, hoje museu. Rezo para que condições de vida como as que a Maria Móra teve, se extin­guam. Que almas generosas como a dela tenham sempre oportunidades de se desenvolverem em plenitude e com a dignidade que merecem.

Maria Antonia de Oliveira é mestre em Psicologia, educadora, especialista em Superdotação/Altas Habilidades, psicote­ra­­pe­uta e escritora. Entre os livros publicados estão: Terra de Formigueiro; David de Oliveira – um homem de alma grande; Viagem pelo mundo interior. Recentemente lançou pela Amazon “Jorney trought the inner world”.

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