23 de agosto | 2015

Relatos mostram mente ardilosa de líderes presos pela PF

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Um ex-membro da seita religiosa Jesus a Verdade que Marca suspeita de manter trabalhadores em regime análogo à escravidão deu detalhes de como funcionaria o esquema da organização, inclusive para convencer as pessoas a doar seus bens. “A realidade é essa: manipulação de mente, entendeu? Daí, o ‘cara’ desfaz totalmente da vida dele, larga a família”, conta. Ayrton Barbosa disse que trabalhou em um restaurante em Pouso Alegre, sul de Minas, como auxiliar de cozinha.

Barbosa revelou ao G1 Sul de Minas que trabalhou por um ano sem receber salários. “Pra não ter problema com a Justiça, o que eles ‘faz’. ‘Eles ‘pega’ e começa a registrar as pessoas lá. Registra, só que você não ganha nada”, conta.

Segundo ele, todo o dinheiro iria para o pastor Cícero Vicente de Araújo, apontado pela Polícia Federal (PF) como o principal líder da seita. “Vai pra mão dele. Na mão dele, ele compra maquinário. Na mão dele, ele monta outros comércios. Ele não põe tudo no nome dele porque se ele pôr no nome dele, a Justiça pega ele, entendeu? Então, ele põe no nome de algum dos líderes, alguns dos ‘laranjas’ lá. Mas quem comanda é ele”, relata.

Barbosa afirma ainda que os seguidores da seita são manipulados a fazer o que os líderes pedem. “A realidade é essa… manipulação de mente, entendeu? Daí, o ‘cara’ desfaz totalmente da vida dele, larga a família. Quando eu abri o olho já ‘tava’ tarde. E, tem muita gente que já abriu o olho ‘tando’ lá. Mas, o que acontece… o ‘cara’ já desfez de tudo que tem. Eu não tinha nada, ficou mais fácil. Eu vim pra casa da minha mãe só com a roupa do corpo. E os outros que vendeu casa, vendeu carro e não tem mais nada. O ‘cara’ vai fa­zer o quê? Eles mostram uma coisa, mas lá é outra. Só quem sabe é quem ‘tá’ lá dentro. Então, o negócio deles, que eu vejo, é ganância por domínio e poder”, finaliza.

Segundo o delegado da Polícia Federal que preside as investigações, Thiago Severo de Rezende, as vítimas estavam em um estado de fragilidade emocional muito grande, geralmente com problemas familiares. Entre os membros, há desde pessoas simples, sem bem nenhum, como também alguns que possuíam propriedades e dinheiro que eram passados à instituição.

“EM NOME DE DEUS”

A costureira OM, de 37 anos, relatou ao jornal Estado de Minas da quarta-feira, dia 19, que o patrimônio de uma vida foi entregue “em nome de Deus”.

O depoimento denuncia uma rotina de doutri­na­men­to, expropriação, trabalhos forçados e toda sorte de restrições em uma co­mu­nidade de São Vicente de Minas, no Sul de Minas Gerais.

O primeiro contato dela com o grupo ocorreu em 2000. Ela morava com o marido e filhos em Itaim Paulista (SP) e, influenciada pelo companheiro, passou a viajar para a capital do estado especialmente para frequentar o templo.

Não demorou muito, se desfez da casa que havia herdado da mãe, vendeu móveis e tudo o que tinha para doar o dinheiro ao grupo religioso, com a promessa de viver com a família em uma comunidade onde tudo seria de todos.

Foi assim que começou seu drama. “Eles me iludiram. Fui para lá. Vendi a casa, doei tudo, até os móveis. Depois, saí sem nada”, lamenta. Atualmente ela vive em uma casa alugada em São Vicente de Minas: “Eu e os meus seis filhos saímos da comunidade com a roupa do corpo e três colchões velhos“, denuncia.

OM ficou feliz com a notícia da ação da PF e ainda tem esperança de reaver o que perdeu. Foram 12 anos trabalhando sem salário em propriedades da seita.

Mas a costureira se acha corajosa por ter abandonado o grupo: “Enfrentei tudo para sair. O que a polícia está falando é verdade: até o líder religioso com quem eu convivi por seis anos não era quem a gente pensava”. “Falavam que, se a gente fosse embora, seríamos amaldiçoados. Mas, antes, prometiam ajuda a quem desistisse, que pagariam três meses de aluguel e dariam todo o tipo de assistência. Saí em agosto de 2013 e meu marido saiu dois meses depois. Mas eu não quis mais ficar com ele”.

A ex-seguidora sustenta que o grupo usou da sua fragilidade para convencê-la a entregar tudo o que tinha. “Eu era imatura, cheia de filhos. Minha mãe tinha acabado de morrer e meu padrasto era violento. Hoje, a minha sensação é de injustiça. Fico revoltada quando vejo os líderes da seita andando de BMW e Hilux e eu aqui, sem nada“, reclama.

A costureira relata que, por um tempo, o ex-marido permaneceu empregado fora da organização, doando todo o salário, na época R$ 1,2 mil. Quando largou o serviço para trabalhar de graça para a comunidade, transferiu até o Fundo de Garantia.

CENSURA E

RESTRIÇÃO

De acordo com OM, na comunidade havia regras para tudo. “Dormíamos todos em alojamentos. Eu e minhas filhas, em um galpão com mais de 30 pessoas; os homens em outro galpão. Sexo, só para procriação e não para o deleite, como diziam. Encontros íntimos, só de vez em quando. Cheguei a ficar três anos sem relações com meu marido”, disse ela. A programação de TV também era censurada. “Só permitiam no­ticiários e os filmes evangélicos que eles passavam. Não podíamos nem ouvir rádio, só louvores“, conta.
As refeições eram feitas para todos. O sino soava pontualmente às 6h30, quando todo mundo tinha que estar de pé. O café coletivo era servido das 6h às 8h­30. Pão, só aos domingos. Nos outros dias, cus­cuz, mandioca ou batata-do­ce cozida para acompanhar o café com leite. O almoço era das 11 horas às 13 horas – a única refeição com carne. O jantar, das 18 horas às 20 horas. Os cultos eram ce­lebrados nos finais de tarde.

Mas, ainda em 2013, ela precisou abandonar o trabalho para cuidar do filho de 13 anos, diagnosticado com um tumor na cabeça. “Fiquei desesperada e procurei o grupo para pedir ajuda. Não me deram assistência. Para falar a verdade, me deram uma geladeira velha e quatro camas caindo aos pedaços. Hoje, sobrevivo com a pensão dos meus filhos e com o dinheiro da Previdência, por causa do meu filho doente“, disse.
“Minha sorte é que encontrei aqui fora muita gente de coração bom, pessoas que me ajudaram sem ficar brincando com a fé em Deus. Apesar de tudo, minha fé é inabalável. E é Deus que tem me ajudado“, disse, emocionada. “Chegaram a di­zer que o tumor na cabeça do meu filho era maldição, por eu ter saído da seita. Não acredito nisso“, conta.
Na comunidade, até as crianças trabalhavam, segundo ela. “Meu menino com 9 anos já tirava leite no curral. A de 11 cuidava dos cavalos e também ajudava a tirar le­i­­te”, relatou. Outra filha com­pletou 16 anos e foi levada para trabalhar em um restaurante da comunidade, em Pouso Alegre, Sul de Minas.

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Comentários

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Todos os Comentários (1)
Agnaldo Oliveira há 5 mêses atrás
Eu também passei cinco anos com este povo é exatamente desta maneira que as pessoas são tratadas, trabalham sem receber salário mas são obrigados a assinar holerite como se tivesse recebendo, quando decidem sair são humilhados,desprezados, amaldiçoados, não recebem os bens que foram doados.
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